terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Um trabalho com conceito MB


Severino a Joaquim

É com certa soberba que te declaro, meu caro Joaquim, que acabei ler o texto que você me recomendara, e não me arrependi. Muito embora, confesso, tenha havido momentos de enfado. Mas, em linhas gerais, o texto é muito bom e creio poder explicar muito das minhas ações no passado e atuais, assim como de outras pessoas, que fiquei sem entender.

Em época de adolescência, meu pai me obrigava muito a ir à igreja, me contrariando, pois o que eu queria mesmo era brincar com meus companheiros na rua. Impôs-me a felicidade dele em detrimento da minha, que era correr pelas ruas com meus camaradas. Nesse sentido, passei a odiar a igreja (a religião), desviando o ódio que eu tinha do meu pai para deus. Ora, se meu velho, além de considerar deus como seu legítimo pai, ainda dizia que eu também era filho de deus, tratei ambos com hostilidade, embora este com maior frequência do que aquele. Tenho aversão, portanto, a religiões, pois não gosto do meu pai lá sentando em seu trono, imponente como uma águia imperial sobrevoando em um campo de centeio.

Mudando de assunto, ontem, quando eu estava voltando para casa, tive uma discussão com o cobrador do ônibus em que eu viajava. Enfureci-me de uma forma tal, que agi como se algo houvesse tomado controle do meu corpo e mente, numa possessão psicossomática. Ao chegar em casa, escrevendo esta carta, me ocorreu que minha reação no ônibus não foi nada mais que a expulsão de sentimentos que são constantemente reprimido pela sociedade.  Os outros passageiros, contudo, me tacharam de louco, e, à minha revelia, os que não falaram, disseram decerto um monte de coisas a meu respeito. Sem conhecer a causa da minha súbita agressividade, cada um interpretou conforme sua ignorância.

A vida em sociedade é, com efeito, cheia de coisas desagradáveis, e quanto mais você estuda, se conscientiza dos matizes dos males do convívio humano e do próprio humano, mais essas coisas lhe batem a porta, invadindo seus umbrais. Desse modo, quanto mais você estuda, há de reconhecer, mais precisa fugir da realidade, não acha? Desse modo, passei a usar alguns alucinógenos (não fale isso a Lucena, a minha querida e etérea Lucena, que tanto amo). Primeiramente pensava que eu os usava por usar, pelo simples gosto de ficar doidão ou “brisado”. Agora, no entanto, penso ser algo mais além. Pois bem, lendo o texto, inferir que se trata mesmo da fuga da realidade, dum lugar onde haja maior sensibilidade por parte do fugitivo. Quando penso na distância em que me separa (tanto a física como as minhas)de Lucena, dos conflitos em casa e das mais diversas dificuldades, eu me aplico. Todavia, não há meios de ficar fugindo a toda hora. Mais cedo ou mais tarde, a implacável realidade nos jogará um balde de água fria.

A impossibilidade duma sociedade estável, no sentindo do fim da agressividade humana, comunista ou socialista, é pertinente, pois sempre haverá coisas que um homem poderá invejar no outro: um abraço, um olhar, um beijo. Sempre haverá, portanto, ricos e pobres: ricos no afeto, pobres no afeto;  ricos no amor... pobres no amor. E isso será sempre um dos motivos da instabilidade humana, que nem a ajuda humana-abstrata da igreja ou material e moral de qualquer forma de sociedade sanará. Por isso, meu irmão, sempre haverá agressividade em sociedades capitalistas e comunista, esta última, acredito, em um número menor, pois a propriedade privada, um dos grandes motivo das desavenças humana, não existirá. Ademais, o desenvolvimento das forças produtivas foi o que construiu e modificou a existência humana. Logo, se temos um modo de produção mais humano e igualitário, teremos uma sociedade melhor.

Quem, meu amigo Joaquim, nunca pensou em dar cabo da vida? Há alguns anos um amigo meu me falou na vontade dele de se suicidar. Fiquei estarrecido, evidentemente. Não entendia por que aquele sujeito queria abrir mão de viver. Agora, entretanto, eu o entendo. Vivia (e vive) em condições miseráveis, seu pai um bêbedo, seu irmão extraviado pelo mundo do crime (agora morto). A implacabilidade externa e o embate consigo mesmo lhe era, e talvez ainda seja, insuportável. Todavia, ele está bem e optou por continuar vivendo. 

Afinal, Joaquim, aquela vez que te empurrei de propósito pela ladeira abaixo... Que me diz? Sou um demônio? Pedi-lhe desculpas, naturalmente, mas foi um ato de pura maldade. Talvez, quem sabe, não seja um impulso reprimido meu? Quem sabe eu não já queria fazê-lo há muito por você ter saído com a Lucena daquela vez e me deixado a ver navios? E esse sentimento só se revelou ali, no alto daquela ladeira íngreme. Sou malvado por natureza ou a sociedade me degenerou? Diz-me lá! Tenho certeza que, com sua inteligência, dirá que a sociedade tem em parte culpa no caso, mas o homem também tem seu quinhão de maldade, que é domado pelo didaticismo de anjo que nos é ensinado. Vá lá, sou um patife... ou demasiado humano.

Um comportamento interessante, que quando paro para pensar eu logo mergulho em profundas reflexões, é o comportamento em grupo, de massas. Lembra-se daquele carnaval? Quando nós íamos pro carnaval, não sei se lhe acontecia o mesmo, era como se eu, o Severino que todos conhecem, se transfigurasse noutro ser, modelado pela massa. Como se uma alma ancestral, impulsiva e irracional, tomasse lugar em meu corpo. Eu seguia as variações das pessoas que me rodeavam, ficava propício a fazer coisas que jamais faria sozinho. 
Lembra-se como se deu aquela confusão? Não sei o porquê, mas quando dei conta de mim, já estava em cima do sujeito, dando-lhes pontapés. Não o conhecia, não era meu desafeto nem nada. Hipnotizado pelas pessoas que o pisoteavam, chamando-o de uma sorte de palavrões, eu segui a onda. Que acha disso? Talvez, em multidão, seja um momento mais propício para a liberação de nossa agressividade reprimida, com a ajuda dos atos e pensamentos que se juntam num só. Enfim, acho que multidão tem sua aura sobre o indivíduo, de modo que o superego da cada um enfraquece e suje um, o superego coletivo, que os domam e os regem. 

Pior do que o sentimento de culpa de ter batido num sujeito sem ao menos conhecê-lo é ir pro carnaval sem pegar nenhuma pequena, hem? A zombaria é certa. “Pegue! Beije! Coma! Goze!”, ordenam. Quem não obedece, cai numa prostração, sente-se um inútil. Como não se lembrar do companheiro Anderson? Sequer deu um beijinho em ninguém e virou objeto de chacota. Caiu numa tristeza... Mas, quer saber, sabe por que ele não pegou ninguém? Porque anda com roupas insípidas! As garotas gostam roupas extravagantes, relógios, correntes, enfim, o “ter”. Hoje, mais que ter, o sujeito tem que “parecer”.  Mesmo que o sujeito não tenha, ele parecendo que tem já é uma grande vantagem. Por isso, meu camarada, naquela época vestíamos aqueles trajes esdrúxulos, com várias marcas famosas, correntes e sapatos caríssimos. Precisávamos parecer. Nosso ser era jogado para segundo plano. Aquela garota que ficou comigo, por exemplo, acha mesmo que ficou comigo pelo que eu era, pelo que eu tinha ou pelo o que eu parecia ter? A primeira opção é logo descartada, vai concordar; a segunda tangencia, mas acho que ela ficou comigo baseando-se na terceira opção. O parecer hoje, de certa forma, fundiu-se com a realidade de tal modo, que as barreiras que separam um do outro é muito tênue. Estamos na sociedade do espetáculo, onde cada esquina e uma atração à parte.

Acho que já escrevi demais, não é, camarada? Enfim, não se esqueça de dizer que mando um beijo a Lucena. Diga-lhe que, quando penso nela, minha alma dança como uma bailarina. Que estou triste por não poder romper esta distância que nos separa, de você, meu amigo, e dela, minha amada. Outros objetos de tristeza, além da distância, é ela, que me ignora, e eu, que sou o caos em pessoa. Não se admire se algum dia em mim nascer-me um universo, meu caro Joaquim. 

Do seu grande amigo e irmão

 Severino de Maria

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