Severino a Joaquim
É com certa soberba que te declaro, meu caro
Joaquim, que acabei ler o texto que você me recomendara, e não me arrependi.
Muito embora, confesso, tenha havido momentos de enfado. Mas, em linhas gerais,
o texto é muito bom e creio poder explicar muito das minhas ações no passado e
atuais, assim como de outras pessoas, que fiquei sem entender.
Em época de adolescência, meu pai me obrigava muito
a ir à igreja, me contrariando, pois o que eu queria mesmo era brincar com meus
companheiros na rua. Impôs-me a felicidade dele em detrimento da minha, que era
correr pelas ruas com meus camaradas. Nesse sentido, passei a odiar a igreja (a
religião), desviando o ódio que eu tinha do meu pai para deus. Ora, se meu
velho, além de considerar deus como seu legítimo pai, ainda dizia que eu também
era filho de deus, tratei ambos com hostilidade, embora este com maior
frequência do que aquele. Tenho aversão, portanto, a religiões, pois não gosto
do meu pai lá sentando em seu trono, imponente como uma águia imperial
sobrevoando em um campo de centeio.
Mudando de assunto, ontem, quando eu estava voltando
para casa, tive uma discussão com o cobrador do ônibus em que eu viajava.
Enfureci-me de uma forma tal, que agi como se algo houvesse tomado controle do
meu corpo e mente, numa possessão psicossomática. Ao chegar em casa, escrevendo
esta carta, me ocorreu que minha reação no ônibus não foi nada mais que a
expulsão de sentimentos que são constantemente reprimido pela sociedade. Os outros passageiros, contudo, me tacharam
de louco, e, à minha revelia, os que não falaram, disseram decerto um monte de
coisas a meu respeito. Sem conhecer a causa da minha súbita agressividade, cada
um interpretou conforme sua ignorância.
A vida em sociedade é, com efeito, cheia de coisas
desagradáveis, e quanto mais você estuda, se conscientiza dos matizes dos males
do convívio humano e do próprio humano, mais essas coisas lhe batem a porta,
invadindo seus umbrais. Desse modo, quanto mais você estuda, há de reconhecer,
mais precisa fugir da realidade, não acha? Desse modo, passei a usar alguns
alucinógenos (não fale isso a Lucena, a minha querida e etérea Lucena, que
tanto amo). Primeiramente pensava que eu os usava por usar, pelo simples gosto
de ficar doidão ou “brisado”. Agora, no entanto, penso ser algo mais além. Pois
bem, lendo o texto, inferir que se trata mesmo da fuga da realidade, dum lugar
onde haja maior sensibilidade por parte do fugitivo. Quando penso na distância
em que me separa (tanto a física como as minhas)de Lucena, dos conflitos em
casa e das mais diversas dificuldades, eu me aplico. Todavia, não há meios de
ficar fugindo a toda hora. Mais cedo ou mais tarde, a implacável realidade nos
jogará um balde de água fria.
A impossibilidade duma sociedade estável, no
sentindo do fim da agressividade humana, comunista ou socialista, é pertinente,
pois sempre haverá coisas que um homem poderá invejar no outro: um abraço, um
olhar, um beijo. Sempre haverá, portanto, ricos e pobres: ricos no afeto,
pobres no afeto; ricos no amor... pobres
no amor. E isso será sempre um dos motivos da instabilidade humana, que nem a
ajuda humana-abstrata da igreja ou material e moral de qualquer forma de
sociedade sanará. Por isso, meu irmão, sempre haverá agressividade em
sociedades capitalistas e comunista, esta última, acredito, em um número menor,
pois a propriedade privada, um dos grandes motivo das desavenças humana, não
existirá. Ademais, o desenvolvimento das forças produtivas foi o que construiu
e modificou a existência humana. Logo, se temos um modo de produção mais humano
e igualitário, teremos uma sociedade melhor.
Quem, meu amigo Joaquim, nunca pensou em dar cabo da
vida? Há alguns anos um amigo meu me falou na vontade dele de se suicidar.
Fiquei estarrecido, evidentemente. Não entendia por que aquele sujeito queria
abrir mão de viver. Agora, entretanto, eu o entendo. Vivia (e vive) em
condições miseráveis, seu pai um bêbedo, seu irmão extraviado pelo mundo do
crime (agora morto). A implacabilidade externa e o embate consigo mesmo lhe
era, e talvez ainda seja, insuportável. Todavia, ele está bem e optou por
continuar vivendo.
Afinal, Joaquim, aquela vez que te empurrei de
propósito pela ladeira abaixo... Que me diz? Sou um demônio? Pedi-lhe
desculpas, naturalmente, mas foi um ato de pura maldade. Talvez, quem sabe, não
seja um impulso reprimido meu? Quem sabe eu não já queria fazê-lo há muito por
você ter saído com a Lucena daquela vez e me deixado a ver navios? E esse
sentimento só se revelou ali, no alto daquela ladeira íngreme. Sou malvado por
natureza ou a sociedade me degenerou? Diz-me lá! Tenho certeza que, com sua
inteligência, dirá que a sociedade tem em parte culpa no caso, mas o homem
também tem seu quinhão de maldade, que é domado pelo didaticismo de anjo que
nos é ensinado. Vá lá, sou um patife... ou demasiado humano.
Um comportamento
interessante, que quando paro para pensar eu logo mergulho em profundas
reflexões, é o comportamento em grupo, de massas. Lembra-se daquele carnaval?
Quando nós íamos pro carnaval, não sei se lhe acontecia o mesmo, era como se
eu, o Severino que todos conhecem, se transfigurasse noutro ser, modelado pela
massa. Como se uma alma ancestral, impulsiva e irracional, tomasse lugar em meu
corpo. Eu seguia as variações das pessoas que me rodeavam, ficava propício a
fazer coisas que jamais faria sozinho.
Lembra-se como se deu aquela confusão?
Não sei o porquê, mas quando dei conta de mim, já estava em cima do sujeito,
dando-lhes pontapés. Não o conhecia, não era meu desafeto nem nada. Hipnotizado
pelas pessoas que o pisoteavam, chamando-o de uma sorte de palavrões, eu segui
a onda. Que acha disso? Talvez, em multidão, seja um momento mais propício para
a liberação de nossa agressividade reprimida, com a ajuda dos atos e
pensamentos que se juntam num só. Enfim, acho que multidão tem sua aura sobre o
indivíduo, de modo que o superego da cada um enfraquece e suje um, o superego
coletivo, que os domam e os regem.
Pior do que o sentimento de culpa de ter batido num
sujeito sem ao menos conhecê-lo é ir pro carnaval sem pegar nenhuma pequena,
hem? A zombaria é certa. “Pegue! Beije! Coma! Goze!”, ordenam. Quem não
obedece, cai numa prostração, sente-se um inútil. Como não se lembrar do
companheiro Anderson? Sequer deu um beijinho em ninguém e virou objeto de
chacota. Caiu numa tristeza... Mas, quer saber, sabe por que ele não pegou
ninguém? Porque anda com roupas insípidas! As garotas gostam roupas
extravagantes, relógios, correntes, enfim, o “ter”. Hoje, mais que ter, o sujeito
tem que “parecer”. Mesmo que o sujeito não
tenha, ele parecendo que tem já é uma grande vantagem. Por isso, meu camarada,
naquela época vestíamos aqueles trajes esdrúxulos, com várias marcas famosas,
correntes e sapatos caríssimos. Precisávamos parecer. Nosso ser era jogado para
segundo plano. Aquela garota que ficou comigo, por exemplo, acha mesmo que
ficou comigo pelo que eu era, pelo que eu tinha ou pelo o que eu parecia ter? A
primeira opção é logo descartada, vai concordar; a segunda tangencia, mas acho
que ela ficou comigo baseando-se na terceira opção. O parecer hoje, de certa
forma, fundiu-se com a realidade de tal modo, que as barreiras que separam um
do outro é muito tênue. Estamos na sociedade do espetáculo, onde cada esquina e
uma atração à parte.
Acho que já escrevi demais, não é, camarada? Enfim,
não se esqueça de dizer que mando um beijo a Lucena. Diga-lhe que, quando penso
nela, minha alma dança como uma bailarina. Que estou triste por não poder
romper esta distância que nos separa, de você, meu amigo, e dela, minha amada.
Outros objetos de tristeza, além da distância, é ela, que me ignora, e eu, que
sou o caos em pessoa. Não se admire se algum dia em mim nascer-me um universo,
meu caro Joaquim.
Do seu grande amigo e irmão
Severino de Maria
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