Neste texto, tentarei
expor da forma mais objetiva possível, a subjetividade de um personagem
caricato das ruas de Salvador, que “causou” muitas confusões em sua breve
jornada pelas ruas soteropolitanas. Trata-se do Superoutro, personagem que
Edgar Navarro imaginou como um revolucionário lunático que seguia seus
instintos e por isso foi condenado pela civilização a qual iremos discutir
sobre sua sanidade e subjetividade nas próximas linhas nesta primeira parte do
trabalho.
Capital baiana, final
da década de 80, cenário político conturbado e um pleno cenário para a
“aparição” de um personagem fictício, mas que é tão real quanto nós. A sua
subjetividade exposta em forma de atitudes diante de uma sociedade que para a
sua plena existência necessita reprimir o real teor instintivo, chega a ser
agressiva em determinados momentos do filme.
Trabalhar a
subjetividade de um personagem tão peculiar como o “super-outro”, requer uma
tarefa de contextualização histórica a partir de uma visão de sociedade que
passa por um momento crítico no que diz respeito a exclusão e desigualdade
social. Por vários momentos o personagem
se depara com dificuldades cotidianas comuns a quem viveu naquela época e ao
analisarmos a subjetividade deste notório personagem, notamos que há uma linha
tênue entre o objetivo e o subjetivo, que se confundem numa série de atitudes
que põe em dúvidas a sua lucidez. Lucidez(ou falta dela), que quando comparada
numa analise minuciosa as normas cultas da sociedade onde ele está inserido,
faz-se refletir sobre não só sua sanidade mental, mas também a sanidade mental
da própria sociedade. Como se de repente ele despertasse de um sono profundo,
ou se desvinculasse de uma alienação imposta por uma metrópole rodeada por
outdoors e modelos de vida a serem seguidos, Superoutro começa sua jornada
antes de se descobrir como o super herói revolucionário que há dentro de cada
um de nós. Incomodando e tentando de todas as formas chamar atenção, ele é
mandando a um manicômio e considerado um esquizofrênico devido aos seus “delírios”.
Obviamente ele não se identifica com tal diagnóstico e facilmente escapa do seu
exílio e sai pelas ruas de Salvador colocando pra fora todos os seus instintos
e vontades em prol de satisfazê-los a qualquer custo. Não seria diferente se
cada um de nós resolvesse encarnar um personagem (ou abandonar este personagem
civilizado o qual carregamos para viver em sociedade) e nos deixássemos levar
pelos instintos mais reprimidos, a custo disso teríamos que nos acostumar a
viver em tempos de barbárie e nos restaria passar a viver isolados, bem como
nosso personagem em análise. Em seu livro “O Mal-estar na civilização”, Freud
caracteriza a civilização como “a soma integral das realizações e regulamentos
que distinguem nossas vidas das de nossos antepassados animais, e que servem a
dois intuitos, a saber: o de proteger os homens contra a natureza e o de
ajustar seus relacionamentos mútuos”. Natureza esta que ele menciona, se trata
não só da natureza como a conhecemos, mas
o próprios instintos naturais do homem, que por conta das privações do
superego permanecem “adormecidos” no inconsciente. Esses instintos levam o homem a ser primitivo, e a perceber um
enorme incomodo em viver em comunidades e se relacionando com outros homens.
Assim, podemos concluir que em comunidade por incrível que pareça, o homem se
sente menos poderoso, pois a sua autonomia é estritamente dependente da
autonomia de um determinado grupo ou comunidade. No caso de nosso personagem,
ele já nasceu numa comunidade e inserido nas suas regras e convivendo
mutuamente com pessoas que lhe são de seu agrado, ou não. Em momentos no filme,
podemos notar a presença de um agente importante nesse contexto, que talvez sem
ele nos tempos atuais fosse impossível a convivência em sociedade. A força
representada em forma de pessoas, a polícia, que tem como tarefa manter a
“ordem” e a segurança das pessoas, pois sem esta força repressora de um
instinto coletivo, nos deixaríamos levar pelos nossos instintos individuais e
sem limites nosso instinto de destruição seria letal a todos. Voltando ao contexto
em que nosso personagem está inserido, podemos perceber o quão reprimido ele
foi desde o começo do filme, e não podemos deixar de notar o quão livre ele foi
a ponto de expor sua subjetividade de forma, às vezes, até engraçada em
determinados momentos.
O
sono de uma sociedade que finge dormir bem.
Em sua frustrada
tentativa de tirar a sociedade do seu sono de conforto, o super herói encontra
seu primeiro obstáculo diante da imposição da ordem de proteção ao próprio
sono, quando ele entra num prédio aos berros e quebra uma vidraça jogando uma
grande lata de lixo. Mas que sono seria este que ele queria atrapalhar? Não foi
meramente coincidência que ele estava agindo daquela forma na madrugada. O sono
qual ele se referia, era um sono da sociedade, que dormia diante dos fatos que
aconteciam, dormiam para uma realidade a qual ele enxergava e se incomodava.
Durante todo o filme, nosso personagem vai de encontro às “normas” cultas de um
convívio em sociedade e sofre suas consequências punitivas. Ele vai de encontro
a essas normas em vários momentos do filme, seja dançando livremente no meio da
rua, defecando na praia e posteriormente fazendo uso de sua “obra” e
presenteando o condutor de um carro que passeava pelas ruas da barra na
ocasião. O filme possui uma narrativa que mostra o cotidiano de uma pessoa que
na maioria das vezes passa despercebido aos olhos de quem esta situado numa
civilização como a nossa, um “doido de rua”, como costumamos falar, mas que
vive sua realidade assim como as pessoas ditas “normais” na sociedade, sendo
que vivem a margem de tudo isso por não estarem inseridos num padrão de vida
imposto pela própria sociedade onde vivem. Talvez o filme tenha essa mensagem subjetiva quando
a primeira fala se reporta ao sono em que a sociedade vive, e a sua luta para
permanecer “dormindo bem” nele. Essa luta pode ser a causadora de um mal estar
que nos acompanha desde que optamos por viver em comunidades, reprimindo os
instintos e sobrevivendo em conjunto com outros humanos. De fato, ele consegue
“acordar” em partes uma parcela de pessoas que se atentaram a ele, mas ele se
viu diante de uma realidade a qual a civilização está fadada a aceitar,
realidades melhor dizendo, quando se trata de influências sociais como religião
e política, as quais serão melhores abordadas na segunda parte deste trabalho.
O
“Supereu coletivo” contra o “Superoutro
individual’.
Coletivamente, existe um “supereu” ou superego,
que nos motiva não só a permanecer na conduta certa, mas também a nos ater de
vigiar quem foge a essa conduta. Freud diz em seu livro que “A substituição do
poder do indivíduo pelo poder de uma comunidade constitui o passo decisivo da
civilização”, assim, nosso personagem se via dono de seu próprio poder de ser
livre, tomava suas decisões baseado-se nas suas imediatas necessidades, e não
se encaixava numa sociedade civilizada. E esse impulso de liberdade para Freud
“é dirigido contra formas e exigências específicas da civilização ou contra a
civilização em geral”. O sentimento coletivo de vigiar quem está fora desta
conduta civilizatória será melhor discutido na segunda parte do trabalho,
quando entram os conceitos de Foucault.
Mas esta luta do Supereu coletivo conta um superoutro individual não se resume
somente ao personagem de Navarro, pode-se percebê-la em cada desentendimento
entre membros de uma comunidade, ou mesmo de um indivíduo para com a sociedade.
O “superoutro” pode muito bem ser representando como o nosso ID (nosso lado
instintivo aos olhos de Freud) e a sociedade como o nosso Superego, e
paradoxalmente enxergamos no “outro” coletivo algo que temos de individual em
nós mesmos, que internalizamos desde o berço.Autor do texto: Luis Fernando Fróes de Matos
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