ROBERTA DE ARAÚJO LANTYER DUARTE
A SUBJETIVIDADE E A FORMAÇÃO DA LOUCURA DE LAURA NO CONTO “A IMITAÇÃO DA ROSA”, DE CLARICE LISPECTOR.
O
CONTO E LAURA
No
conto “A imitação da rosa”, publicado
em 1960, no livro “Laços de Família”,
Clarice Lispector mostra o processo de formação da “loucura” de Laura. Laura é
uma dona de casa que acabara de passar por um tratamento a base de choques
insulínicos (que era comumente utilizado em pacientes esquizofrênicos).
O
texto mostra a rotina de uma mulher submissa ao marido, Armando, e ao
autoritarismo de Carlota, sua amiga. Uma
mulher que estava mentalmente doente, mas que “agora estava de novo ‘bem’” e voltaria a sua rotina modesta e “à sua insignificância reconhecida”, de
completa desatenção. Seu rosto era modesto, suave, tudo nela era castanho, sua
pele, seu cabelo, seus olhos, afinal:
“Ter cabelos pretos ou louros eram um excesso que, na sua vontade de acertar,
ela nunca ambicionara.”.
Laura
era uma mulher que vivia sem excessos. Buscava a perfeição, tinha um gosto pelo
método, pela limpeza e pelo detalhe e “horror
a confusão”. Laura era também um pouco lenta e cuidadosa. Ela “nunca ambicionara senão ser a mulher de um
homem” e nesta ideia se inclui passar-lhe as roupas e atendê-lo no que
fosse necessário e, além de tudo, dar-lhe um filho – objetivo que ela não conseguira
alcançar e que lhe deixara com uma sensação de fracasso, ofensa.
Laura,
recém “curada” de sua doença, seguia o tratamento que seu médico que receitara:
tomava um copo de leite após todas as refeições para evitar a ansiedade. Esta
ação, segundo o médico, devia ser feita sem a preocupação, pois ela deveria
fazer tudo natural e suavemente, sem ansiedade, para que se “curasse”
definitivamente. Em meio a ansiedade de tomar obrigatoriamente seus copos de
leite naturalmente, Laura se apaixona pela beleza das rosas que havia comprado
na feira. A partir de agora Laura luta para não entrar novamente em estado de
“loucura”, o que será impossível.
A
MENINA LAURA
O
que faz com que uma mulher desenvolva um comportamento como o de Laura? Como se
forma a subjetividade de uma mulher como Laura? Vamos pensar nestas questões a
partir de algumas ideias de Freud.
Em
primeiro lugar é preciso pensar como esta mulher desenvolveu sua subjetividade
enquanto criança, menina. Pensando na formação do Édipo a partir do livro de
Nasio, “Édipo – O complexo do qual
nenhuma criança escapa” e, mais especificamente, do capítulo dois – “O Édipo da Menina”, podemos dizer que
processo do Complexo de Édipo da menina é diferente e mais lento que o do
menino, visto que, na menina existe o período “pré-edipiano”, quando ela é como o menino e tem a mesma sensação
de poder fálico e sexualiza a mãe; depois ela passa pelo “tempo de solidão”, quando ela percebe o seu corpo como diferente
do corpo do menino, percebe o pênis do menino; neste momento a menina tem a
sensação de que não detém o poder que outrora acreditava possuir; “... ela nota que saiu perdendo, e sente
esse fato com desvantagem e razão para inferioridade” (FREUD, 1924, p.
211/212), quem detém o falo na
verdade é o menino, então, ela se sente enganada pela mãe por ter lhe feito
acreditar que possuía o falo, tendo o que Nasio chama de ‘dor da humilhação’ - quando a menina “se recente de uma privação”, ao contrário do menino, que “vivia a angústia de ter a perder”.
Após esta fase a menina passa pelo “tempo
do Édipo”, o qual, enfim, sexualiza o sexo oposto, seu pai. Neste momento a
menina, ressentida com a mãe, quer que o pai lhe dê o seu falo; tendo seu
desejo negado, parte para a tentativa de ser o falo do pai e, paralelamente,
admira o poder de sedução da mãe, sofrendo mais uma recusa por parte do pai, a
menina resolve o Édipo com o desejo de ser o pai, segundo Nasio: “Eis por que digo que a dessexualização do
pai é, no fundo um luto: a menina chora o pai sexualizado e o faz reviver
dessexualizado nela” (NASIO, 2007, p. 57)
Todo
este processo se refere à formação de uma neurótica “normal”. Para Laura,
provavelmente, o complexo não tomou estes mesmos caminhos. Analisando sob este
prisma podemos sugerir que, talvez, o complexo de Édipo de Laura fora
interrompido antes que se pudesse fechar o círculo. Laura provavelmente não
resolveu o Édipo, ela não conseguiu superar a “dor da humilhação”, se sentindo
inferiorizada diante do Falo masculino, criando uma submissão não só ao pênis,
mas ao que este Falo representa, e que explica a sua submissão a Carlota,
autoritária, como se Carlota também possuísse o Falo o qual ela foi privada. É
possível pensar que, após entrar no Édipo e sexualizar o pai e, após as
renúncias, provavelmente muito severas deste pai, esta menina, ao invés de
seguir com o complexo e finalizar o Édipo, tenha voltado à fase anterior, de
dor pela humilhação de ter sido enganada.
Mas
eu me pergunto: para onde foi esta dor, esta agressividade? Bem, uma
possibilidade seria que esta menina se rebelasse contra a mãe “mentirosa” e se
tornasse uma pessoa agressiva. Mas isto não aconteceu com Laura, ao contrário,
ela não demonstra nenhum tipo de agressividade e até “também tomava cuidado para não cacetear a empregada que às vezes
continha a impaciência e ficava um pouco malcriada, a culpa era mesmo sua
porque nem sempre ela se fazia respeitar.”. Desta forma, suponho que a
relação de Laura com sua mãe fosse de amor excessivo, esta mãe, provavelmente,
não lhe deu espaço para a revolta, pois como mostra Freud em “O mal-estar na civilização”, pensando em
“Psicanálise e personalidade total”
de Franz Alexander, que retoma os estudos de Aichhorn:
O
pai ‘brando e indulgente além da conta’ favorece na criança a formação de um
Super-eu demasiado rigoroso, porque, sob a impressão do amor que recebe, esse
filho não terá outra alternativa para sua agressividade que não voltá-la para
dentro. (FREUD, 1929)
Esta
agressividade de Laura, voltada para dentro, pode explicar o seu sentimento de
culpa excessivo, visto que o seu Super-eu é, por demais, rigoroso. Por isso
Laura tem esta obstinação pela perfeição, pelo detalhe, pela limpeza. Ela se
acha inferior, humilhada pela falta do falo, então, procurava esta perfeição,
imposta pelo Super-eu, em outros objetos. Como nas gavetas que “chegava a desarrumá-las para poder
arrumá-las de novo” e, mais tarde, na beleza perfeita da rosa, que lhe
devolverá ao estado de loucura.
LAURA
E A CIVILIZAÇÃO
Sabendo
da formação interrompida do Édipo de Laura, é possível pensar como se dá o que
Freud chama de “Princípio de Prazer” e “Princípio de Realidade” na
subjetividade de Laura.
Para
Freud o “princípio do prazer” é o que rege a vida humana. O “princípio de
realidade” vem para represar algumas pulsões do homem; é o que permite a vida
em sociedade.
Em
uma mulher como Laura, com um Super-eu tão severo, o “princípio da realidade”
sufoca o “princípio do prazer”, deixando as sua pulsões, todas, represadas.
Este Super-eu faz com que Laura mantenha seu transtorno por limpeza:
Beleza,
limpeza e ordem ocupam claramente um lugar especial entre as exigências
culturais. Ninguém dirá que elas são importantes para a vida como o domínio das
forças naturais e outros fatores que ainda veremos, mas ninguém as porá em
segundo plano, como coisas acessórias. (FREUD, 1929, p.38)
Partindo
desta citação de Freud, podemos pensar em um aspecto que, a meu ver, é um dos
mais importantes no que se refere ao processo que permite que Laura chegue à
loucura. Trata-se da beleza.
A
beleza está, durante todo o conto, num lugar de incômodo para Laura. Laura se sente
inferior, por isso não almeja (ou declara não almejar) a beleza: “‘Não tem importância que eu engorde’, pensou,
o principal nunca fora a beleza.”. Por outro lado a beleza da rosa a incomoda:
“Mas, sem saber por quê, estava um pouco
constrangida, um pouco perturbada. Oh, nada demais, apenas acontecia que a
beleza extrema incomodava.”.
Perturbada
com a beleza das rosas que “pareciam
artificiais”, Laura entra em profunda confusão. Há, na realidade, uma luta
entre o seu Id, que quer as rosas,
que quer o prazer de admirá-las e o seu Super-eu, severo, que não lhe permite um
pouco de prazer:
“Mas
a atenção não podia se manter muito tempo como simples atenção, transformava-se
logo em suave prazer, e ela não conseguia mais analisar as rosas, era obrigada
a interromper-se com a mesma exclamação de curiosidade submissa: como são
lindas.”
Laura
se vê, então, em um embate entre ficar com as rosas e se permitir este prazer
ou entregar as rosas a Carlota. No meio deste embate Laura se utiliza de
argumentos para ficar com as rosas sem se sentir culpada:
O
fato de não durarem
muito parecia tirar-lhe a culpa de ficar com elas, numa obscura lógica de
mulher que peca. Pois via-se que iam durar pouco (ia ser rápido, sem perigo).E
mesmo — argumentou numa última e vitoriosa rejeição de culpa — não fora de modo
algum ela quem quisera comprar, o vendedor insistira muito e ela se
tornava sempre tão tímida quando a constrangiam, não fora ela quem quisera
comprar, ela não tinha culpa nenhuma.
Porém
o seu Super-eu, que tudo vê, não lhe permite ficar com as rosas, visto que,
“sabe” que ela não é digna de tanta beleza, ela não possui o Falo e nem
conseguiu um filho para substituir o Falo inexistente. Sobre este sentimento de culpa Freud explica:
O
sentimento de culpa, a dureza da Super-eu, é então o mesmo que a severidade da
consciência, é a percepção que tem o eu Eu de ser vigiado assim, a apreciação
da tensão entre os seus esforços e as exigências do Super-eu, e o medo ante
essa instância critica (subjacente à relação inteira), a necessidade de castigo
é um expressão instintual do Eu, que por influência do Super-eu sádico
tornou-se masoquista, ou seja, emprega uma parte do instinto para destruição
interna nele presente para formar uma ligação erótica com o Super-eu.(FREUD,
1929, p.83)
Com
o excessivo sentimento de culpa que rodeia Laura, ela não consegue atingir a
felicidade. A civilização é, para ela - que não possui o Falo, que não possui
um filho, e que se sente inferior, por isso, submissa – muito pesada. Laura, na
verdade, almeja ser a rosa, possuir sua beleza. Laura identifica, na rosa, o
seu Falo a tanto almejado. No entanto, ela o perde novamente, perde o que nunca
possuíra, “não eram mais suas, como uma
carta que já se pôs no correio!”.
Laura não poderia suportar mais esta
interdição, “E as rosas faziam-lhe falta.
Haviam deixado um lugar claro dentro dela.” Laura, que não resolveu seu
Édipo como deveria, se “tornando” o pai, tenta resolver agora, tardiamente e
patologicamente, se tornando a rosa, imitando-a. Laura, que não pode ter prazer
na civilização, se refugia, se afasta da civilização afinal: “...o afastamento dos demais é a salvaguarda
mais disponível contra o sofrimento que pode resultar das relações humana”(FREUD,
1929, p. 21). Ela vai ao extremo, se refugia na loucura, não pertence mais à
civilização, o Super-eu não dita mais as regras. Retornara ao estado de “um barco tranquilo que se empluma nas
águas”, à “terrível independência”, à
“falta de alerta de fadiga”. Laura
deixou de ser uma ‘senhora distinta’ e
voltou para a “extravagância”. Laura
se tornou novamente “luminosa e
inalcançável” e agora permanecia “sentada
no sofá sem apoiar as costas, de novo alerta e tranqüila como num trem. Que já
partira.”.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
· LISPECTOR,
Clarice. A Imitação da Rosa. In Laços de família. Disponível em: http://claricelispector.blogspot.com.br/2008/07/imitao-da-rosa.html
· NASIO,
J.D. Édipo – o complexo do qual
nenhuma criança escapa. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
· FREUD,
Sigmund. A dissolução do complexo de
Édipo (1924). In Jornal de
Psicanálise, Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, V. 33, N60/61,
PP. 483-9, dezembro de 2000.
· FREUD,
Sigmund. O mal-estar na civilização. Tradução
Paulo César de Souza, - 1° ed. – São Paulo: Penguin Classics Companhia da
Letras, 2011.
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