quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Culpas e regras

Culpas e regras

Contardo Calligaris

Assisti a "Carol", de Todd Haynes. Cate Blanchett, no papel de Carol, foi indicada ao Oscar de melhor atriz, e Rooney Mara, no papel de Therese, ao de melhor atriz coadjuvante.

O filme, aliás, recebeu seis indicações ao Oscar 2016 –entre elas, melhor roteiro adaptado, do romance "The Price of Salt" ("Carol", no Brasil), de Patricia Highsmith, de 1952.

Ao menos Rooney Mara deveria ganhar a estatueta, mas talvez minha capacidade crítica seja comprometida pelo charme de Therese. Enfim, vou evitar spoilers e ficar com as reflexões que alegraram meu domingo, na saída do cinema.

1) "Carol" conta uma história de amor entre duas mulheres. Não é a história de um amor "homossexual": o encantamento recíproco de Carol e Therese não supõe que fossem ou sejam homossexuais. Talvez elas venham a ser depois desse amor.

A história é escandalosa justamente por isso. Não há como assistir tirando o corpo (ou a alma) fora, declarando que, sei lá, "isso não vai acontecer comigo porque eu não sou homossexual". O amor e o desejo são terrenos movediços: quase sempre, a gente se encanta por outros do mesmo sexo dos que costumamos namorar, mas, em "quase sempre", o acento é sobre o "quase".

2) Para discriminar, basta supor que a peculiaridade do outro tenha algum tipo de "causa" –psíquica ou física–, enquanto a conduta da gente não precisaria de causa alguma (justamente, por não ser uma "peculiaridade").

A etiologia é o último bastião do preconceito: como tem mais héteros que homos, então a homossexualidade deve ter uma "causa". A heterossexualidade não precisa.

É uma discussão furada: "a" homossexualidade e "a" heterossexualidade não existem; só há singularidades sexuais, que todas têm causas variadas, nenhuma sendo mais "natural" do que a outra.

3) Na época de Carol e Therese (anos 1950), em Nova York, um amor homossexual poderia ser considerado imoral por um tribunal. Hoje, em tese, nossa Justiça fugiria desse tipo de apreciação, embora ainda haja boa chance de um juiz ou uma juíza medir a sexualidade dos outros com uma bitola –e que essa "medição" pese na hora de ele ou ela julgar.

Mas, de certa forma, tanto faz. Regra sem muita exceção: a repressão externa é quase impotente se ela não for sustentada pela culpa interna.

Se eu não me culpo pelos desejos ou pelos amores que sinto e que parecem "dissonantes", a lei ou os costumes podem muito pouco na inibição do meu comportamento (amoroso e sexual, no caso).
No movimento gay entre os anos 1960 e os 1980, a estratégia de "coming out" (de se revelar ou se desmascarar) não era tanto uma provocação contra uma sociedade repressora quanto uma declaração pública para acabar com a culpa interna.

Sem a culpa interna e a vergonha que ela produz, o poder de uma lei repressora é mínimo –ele acaba valendo apenas como um exercício de força, sem autoridade simbólica.

A culpa, em suma, não é o efeito de nossas transgressões da regra social. Ao contrário, a regra social aproveita a culpa para poder se impor. Ou seja, a culpa interna é uma condição, não um efeito, da repressão.
Em outras palavras ainda, minha culpa e minha vergonha servem para instituir e sustentar a regra que parece (mas só parece) motivá-las. Como em "O Processo", de Kafka: primeiro sinta-se culpado, logo lhe diremos de quê.

Há os casos em que a culpa interna e a repressão que ela permite são necessárias para o convívio social –por exemplo, para que a gente não se mate em cada esquina. Mas, em geral, o que acontece é que nossa neurose média nos leva a oferecer nossa culpa como um sacrifício aos deuses da cidade, como se nós estivéssemos sempre pedindo: "Me reprimam, por favor".

É isso, aliás, que confere um extraordinário poder aos psicopatas entre nós –sejam eles assassinos ou meros ladrões de galinhas. Nós nos sentimos culpados por fazer o que sequer é proibido. E os psicopatas não sentem culpa sequer para fazer o que é proibido.

Continua valendo uma famosa frase de Albert Camus em um encontro internacional de escritores, em 1948: "Vivemos numa época em que os homens, empurrados por ideologias ferozes e medíocres, acostumam-se a ter vergonha de tudo. Vergonha deles mesmos, vergonha de serem felizes, de amar e de criar ("¦). Em suma, é preciso se sentir culpado. Somos levados à força ao confessional laico, o pior de todos"



28 janeiro de 2016

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