sábado, 18 de outubro de 2014

Na Folha de hoje

Dalí é Freud

Mostra do surrealista chega ao Tomie Ohtake com obras que escancaram obsessão de sua obra pelo pai da psicanálise
SILAS MARTÍDE SÃO PAULO
Numa paisagem desértica, com rochedos que saltam da terra, aparece o rosto de Sigmund Freud, o pai da psicanálise. Salvador Dalí, um dos maiores mestres do surrealismo, cravou no sonho estampado nesse quadro a imagem de sua maior influência.
Nenhum outro autor ou artista teve tanto impacto sobre a obra do excêntrico pintor espanhol, morto aos 84, em 1989, quanto o austríaco.
Em seu livro "A Interpretação dos Sonhos", publicado em 1899 e traduzido nos anos 1920 para o espanhol, o criador da psicanálise destrincha os sonhos --em especial as imagens dos devaneios de seus pacientes-- como sintomas de traumas profundos, que resistem em vir à tona.
Dalí, que então flertava com outras vanguardas, encontrou em Freud a base da invenção de seu mundo surreal, centrado no sexo e cheio de imagens fortes, como formigas que se multiplicam, corpos em putrefação, relógios derretidos, muletas que sustentam rostos flácidos e facas que destroçam a pele.
Numa das maiores mostras do surrealista já realizada no país, que levou quase 1 milhão de pessoas ao Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio, e chega agora ao Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, Dalí escancara esse mundo ao mesmo tempo tétrico e sedutor desencadeado por Freud.
É como se a certeza de encontrar nos sonhos a raiz de suas angústias servisse de receituário para obras em que Dalí povoa sua representação hiper-realista do litoral pedregoso da Catalunha, onde nasceu, com criaturas fantásticas.
Numa de suas telas mais famosas, Dalí se retrata como criança, com um fêmur na mão, olhando para uma gigante esquelética, que parece apodrecer ou derreter sob a crueza do sol num deserto.
"Todos os seus temores e angústias ligados ao sexo estão plasmados ali, com luz e paisagem bem definidas", diz Montse Aguer, curadora da mostra, sobre "O Espectro do Sex Appeal", tela de 1934, que está na mostra de Dalí.
A mulher do pintor, Gala, é a maior estrela desse teatro fanático, aparecendo de todas as formas --de sedutora voraz a uma paciente à beira da morte. Até sua ausência é retratada, como na tela com uma cama vazia cheia de formigas.
"Ele queria exorcizar seus demônios interiores relacionados à infância", diz Aguer. "E define Gala como um anjo para seu equilíbrio mental."
Entre anjos e demônios, Dalí desenvolveu até uma técnica para se manter num estado de vigília, na tentativa de se deixar tomar por imagens do inconsciente e ao mesmo tempo manter a lucidez para arquitetar suas telas.
Ele descansava com uma bacia de alumínio no colo, segurando uma colher, que o acordava sempre que escapava das mãos e caía no pote, algo que ele comparava à lâmina de uma guilhotina despencando sobre seu pescoço.
Esse estado entre sono e consciência também reflete as metáforas para castração ou coito interrompido na obra de Dalí, em que o sexo impera, só que menos como gozo e mais como uma frustração.
"Dalí era obcecado por sexo", diz Eliane Robert Moraes, especialista em literatura erótica. "Nessa preponderância do erótico, o desejo anula as figuras, e tudo se transforma por causa disso. É a ideia do corpo fragmentado de inúmeras formas."
No caso, Moraes se refere às imagens recorrentes de corpos mutilados nos quadros de Dalí, muitas vezes amparados por muletas, que críticos veem como alusão à impotência sexual do pintor.
'CAMPO ENIGMÁTICO'
"Ele trabalhou para criar imagens passionais", diz Moraes. "Aquilo que em Freud seria doença é chamado de expressão poética em Dalí."
De fato, o artista não se interessava pelas teorias da psicanálise. Depois de muita insistência, quando conseguiu ficar cara a cara com Freud, já à beira da morte, no fim dos anos 1930, pouco foi dito.
Na ocasião, Dalí fez dois desenhos do austríaco, um deles em que o cérebro do retratado ganha a forma de caramujo, e contou depois que se "devoraram com os olhos".
Quando isso surge regurgitado nas telas, não falta quem tente aplicar cartilhas para traduzir Dalí. É o que o psicanalista João Frayze chama de "psicanálise selvagem", lembrando que olhar as telas do pintor não equivale a uma sessão no divã. Dalí é ainda um "campo enigmático".

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