terça-feira, 27 de setembro de 2011

Especial

Pessoas, eis alguns trechos de um especial sobre psicanálise publicado no caderno equilíbrio de hoje da Folha de S. Paulo. No domingo passado, o A Tarde também publicou uma entrevista sobre o tema, no caderno Muito.
Boa leitura, Leandro




ENTREVISTA

Das neuroses de ontem ao narcisismo de hoje

Os psicanalistas saíram do seu período de recolhimento e a terapia pela palavra está em pleno desenvolvimento por aqui, na visão do diretor-presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Carlos Cecconello/Folhapress
Plinio Montagna na sede da SBP, em São Paulo

DÉBORAH DE PAULA SOUZA*
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

O maior desafio da psicanálise hoje são as fobias, a síndrome do pânico e outros "estados narcísicos", como diz Plinio Luiz Kouznetz Montagna, diretor-presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
Neste mês de reflexão -já que a entidade celebra 60 anos de filiação à IPA (International Psychoanalytical Association)-, o psicanalista diz que esse campo está em plena fase de desenvolvimento. Ele conta como um método demorado, profundo e caro sobrevive neste mundo imediatista, em que remédios se colocam como alternativa à conversa terapêutica.

Folha - Como o senhor define a psicanálise hoje?
Plinio Luiz Kouznetz Montagna - 
Ela atua em vertentes interligadas: é tratamento clínico; método de pesquisa sobre o ser humano e teoria do funcionamento da mente que permite generalizações. Ocorre que pensar a clínica permite pensar a cultura e essa conexão com artes e filosofia se mantém. É um campo de saber em desenvolvimento, não está fechada, progride com fluxos e refluxos. Na IPA convivem 12 mil psicanalistas do mundo, de tendências diferentes.

E muitas divergências, não?
Quando Freud era vivo, era ele quem dizia: isto é e isto não é psicanálise. Depois que morreu, ficou mais difícil. Enquanto os grandes mestres do século 20 (Winnicott, Klein, Lacan) estavam vivos, as pessoas seguiam uma linha. Hoje, a tendência é depurar as contribuições de cada autor e articular uma conversa entre eles. Não para integrar, pois as diferenças existem mesmo. Na década de 1980, tantas correntes nos fizeram questionar o que há de comum na psicanálise. Concordamos sobre três pontos: nosso objeto é o inconsciente; a importância da transferência e da contratransferência e a noção de que o passado deve ficar no passado.

Como isso se traduz no consultório?
O que diferencia a psicanálise de outras psicoterapias é o jogo transferencial. Para produzir uma mudança, o que adianta é fazer o problema emergir aqui e agora, na relação com o analista, de modo que seja possível trabalhar com ele. O analista é como uma tela em que o paciente projeta imagens. O complicador é que o analista não é uma tela em branco. Levamos em conta a contratransferência, a relação do profissional com seu paciente: inclui as dificuldades dele, pontos cegos que o impedem de escutar. O trabalho não se restringe a ouvir o relato, o analista escuta inconsciente.

O método nasceu como uma cura pela fala. Essa conversa pode ficar muito racional?
A racionalização não é análise e sim a tentativa de evitá-la. Essa defesa pode surgir tanto do paciente quanto do analista, porque o contato emocional gera turbulência. As resistências fazem parte, porém, o cerne da psicanálise é o encontro, e ele só ocorre quando se vai além das defesas. Por isso temos de saber manejá-las.

E quanto ao passado? Muita gente acha que psicanálise é ficar falando de traumas da infância.
Psicanálise não é "falar sobre". A transferência é uma espécie de atualização do passado com o objetivo de permitir que o presente se instale. A análise permite que o passado fique no passado e a pessoa viva no presente. Essa é a libertação.

Aqui no Brasil, a psicanálise avança ou recua?
Nos anos 50 e 60 houve implantação e expansão, depois teve um momento em que as terapias corporais e o psicodrama estavam em destaque. Por um período, os analistas se recolheram nos consultórios. A clínica continua sendo fundamental, mas hoje vivemos um florescimento para além dela, um momento de grande inserção social.
Na Sociedade, há grupos ocupados com atendimento à comunidade, psicanalistas que dão suporte a uma ONG que trabalha com meninos de rua, sem falar na atuação em hospitais. Os analistas também atuam cada vez mais no setor jurídico, trabalhando como mediadores e peritos em questões de família, divórcio, guarda de filhos. E podem contribuir muito graças à visão global que têm de situações complexas como interdição, brigas, drogadição, violência doméstica etc.

Como a técnica responde às patologias contemporâneas?
Esse é o grande desafio atual: lidar com fobias, pânico, transtorno bipolar, borderline, os chamados estados narcísicos. Todas essas patologias têm em comum o fato de serem estruturas arcaicas [criadas no início da vida, antes da linguagem e do amadurecimento da psique], ou seja: se instalam antes do mecanismo de repressão. Na neurose, a repressão já está instalada, existem os conflitos psíquicos e, nessa etapa, é possível simbolizar o sofrimento. No caso do pânico, por exemplo, não existe nem esse conflito. Imagine o medo tentando entrar na mente. Sem a parede da censura para barrá-lo, ele a invade. E, como na estrutura arcaica não há possibilidade de simbolização, o que costuma ocorrer são dores e outras manifestações corporais. Os psicanalistas hoje se debruçam sobre esses fenômenos. A Sociedade tem equipes de estudos de fibromialgia, dores crônicas, psicossomática. Há membros da Sociedade pesquisando conexões entre dor física e psíquica.

O senhor é psicanalista e psiquiatra, e há um embate entre essas áreas. O que acha da oferta de remédios que prometem alívio rápido?
O avanço da psicofarmacologia permitiu medicações mais eficientes e com menos efeitos colaterais. Por outro lado, é avassaladora a quantidade de dinheiro investido na indústria de remédios, não só no desenvolvimento científico, e sim na propaganda. A promessa de "felicidade química" surgiu na década de 80, com o Prozac. Foi questão de tempo para todos descobrirem que não existe pílula de felicidade.
Aliás, a psicanálise também não traz felicidade. Nem promete. A psiquiatria clássica perdeu o contato com o ser humano, tenta encaixá-lo numa lista de sintomas pré-estabelecidos. O resultado é que muitos psiquiatras diagnosticam a tristeza como depressão. Isso é um desvio, não é o caso de se medicalizar tudo.

É possível medir os resultados de uma análise?
A psicanálise promove transformações significativas. Existe um grupo em Boston que está pesquisando mudanças psíquicas. Esse grupo estudou pessoas que consideravam que suas análises tinham sido bem-sucedidas. Elas destacaram a vivência de uma comunicação profunda com seus analistas e "insights" que alteraram a percepção de si e das situações. Comparo os "insights" da análise ao sistema olfativo: sentir um aroma novo não significa só adicioná-lo ao repertório conhecido, e sim alterar o circuito de tal modo que, a partir daí, o próximo odor será recebido de forma diferente, porque toda a estrutura do arquivo foi modificada.

Por que a profissão não é reconhecida pelo Ministério da Educação?
Na década de 50, foi oferecido à SBPSP a possibilidade de se oficializar a profissão e a formação, mas esse caminho não foi adotado. Na minha opinião, por um erro de cálculo, mas nem todos concordam comigo. Muitos acham que não é o Estado que tem que reconhecer nossa profissão, e sim as próprias instituições psicanalíticas.


OPINIÃO 

Uma gramática dos afetos

Preferimos nos dopar a ter de encarar o exercício lento e inseguro de pensar de outra forma

VLADIMIR SAFATLE
COLUNISTA DA FOLHA

Desde que a psicanálise apareceu anuncia-se seu fim. Esse fim nunca chegou, embora algo como uma "cultura psicanalítica" presente nas sociedades ocidentais tenha tido momentos de declínio.
Uma das maiores peculiaridades da psicanálise está no seu jeito de constituir um novo modo de compreensão de nossos afetos e conflitos.
Uma nova gramática dos afetos nasceu com ela, que moldou, de maneira decisiva, a autopercepção do sujeito contemporâneo. Nossa visão de família, sexualidade, moralidade e corpo são incompreensíveis sem a referência à psicanálise.
Os anúncios insistentes do seu declínio podem ser vistos não só como uma querela a respeito da eficácia de dispositivos clínicos. Trata-se de fornecer às nossas sociedades ocidentais outra gramática dos afetos.
Alguns podem achar estranha a afirmação segundo a qual o destino de uma prática clínica não estaria, necessariamente, associado à reflexão sobre sua eficácia.
A psicanálise nunca foi um conjunto estático de procedimentos e conceitos. Um leitor atento de Freud sabe que ele age a todo momento como alguém testando e abandonando hipóteses.
Além do que, o debate psicanalítico modificou-se graças a Jacques Lacan, Donald Winnicott, Bion, Otto Kernberg, entre tantos outros.
O que não mudou e, por isso, define a perspectiva psicanalítica de maneira decisiva, é a crença de que o sofrimento psíquico não é dissociável da compreensão que o paciente tem de sua doença. O sofrimento coloca em questão a vida do sujeito, seus ideais de autorrealização, seus valores morais, sua ideia de si mesmo.
É uma maneira de lembrar que não é só o corpo que nos faz sofrer. Podemos sofrer por nossas ideias e valores. Podemos até fazer com que o corpo seja veículo da dor causada por ideias e valores.
Nesse sentido, uma das grandes contribuições da psicanálise foi a compreensão de que a constituição de ideias e valores que orientam nossa vida é sempre conflitual e contingente. Tais conflitos voltam em vários momentos, nos obrigando a produzir novos acordos, a pensar de outra forma.
E nada mais aterrador do que se ver na necessidade de pensar de outra forma. Preferimos nos dopar a encarar o exercício lento e inseguro de pensar de outra forma.
Essa é, talvez, a essência da especificidade da psicanálise. Sua gramática dos afetos nos traz uma maneira de nos descrevermos em que noções como conflito, contradição, contingência e insegurança são fundamentais. Sua clínica visa permitir ao sujeito desenvolver habilidades para conjugar tal gramática.
Nenhum psicanalista responsável negaria hoje o uso de medicamentos em situações de quebra subjetiva. A questão é a crença de que o tratamento deva ser reduzido ao setor da farmacologia. Tal redução é feita em nome da implantação de outra gramática dos afetos, no interior da qual nossa vida poderia ser otimizada, calculada a partir de equações que nos garantiriam boa performance no trabalho, na vida sexual, no casamento.
Uma vida em que a linha separando a normalidade da patologia é feita em traços não problemáticos. Tudo rápido, mesmo que precisemos tomar antidepressivos anos a fio. Por isso, por trás de querelas sobre modelos de tratamento psiquiátrico, sempre encontraremos uma questão maior, a saber: que tipo de pessoa queremos ser. 



RESUMO DA ÓPERA

De onde vem, para onde vai

Entenda as principais ideias que movimentaram a psicanálise desde a origem até agora

GUILHERME GENESTRETI
DE SÃO PAULO

AS INFLUÊNCIAS

FINAL DO SÉCULO 19 


JEAN-MARTIN CHARCOT
(1825-1893)
Neurologista francês, aplicava a hipnose para tratar pacientes histéricas no hospital em Paris em que Freud fez estudos de neuropatologia
Como influenciou a psicanálise: Seu método inspirou Freud a investigar a origem mental dos sintomas físicos da histeria

FINAL DO SÉCULO 19 E COMEÇO DO SÉCULO 20

JOSEF BREUER
(1842-1925)
Médico austríaco que colaborou com Freud em seu primeiro livro, "Estudos sobre a Histeria", de 1895
Como influenciou a psicanálise: Ao tratar uma paciente histérica, percebeu que os sintomas diminuíam quando ela falava sobre eles, inspirando Freud a desenvolver o método da associação livre

O TRONCO 

PRIMEIRA METADE DO SÉCULO 20

SIGMUND FREUD
(1856- 1939)
Fundou a psicanálise ao desenvolver uma técnica para sondar conflitos psíquicos
Teoria: O comportamento humano não é regido apenas pela vontade consciente, mas por pulsões e pelas formações do inconsciente, região que armazena memórias, necessidades e desejos reprimidos. A origem do conflito psíquico remonta às fases do desenvolvimento psicossexual da criança (oral, anal, fálica e genital) e ao complexo de Édipo
Técnica: Pela associação livre, o analista propõe ao paciente falar o que lhe vem à mente, seja sobre seus afetos, sonhos ou outros sinais comunicados pelo inconsciente

A PARTIR DOS ANOS 50

JACQUES LACAN
(1901-1981)
Psicanalista francês, fundiu a teoria freudiana com os estudos de linguística e antropologia. Seus métodos, tidos como excêntricos, o levaram a ser expulso da Sociedade Psicanalítica de Paris por imposição da IPA -Associação Psicanalítica Internacional
Teoria: O inconsciente é constituído das próprias regras que estruturam a sociedade, cuja lógica é fornecida pela linguagem. Para entender os conflitos psíquicos, o analista escuta o discurso e observa as relações do paciente com a linguagem
Técnica: A sessão leva em conta o tempo lógico, definido pelo analista, e não o cronológico de 45 ou 50 minutos

OS SEGUIDORES 

PRIMEIRA METADE DO SÉCULO 20

SÁNDOR FERENCZI
(1873-1933)
Psicanalista húngaro e seguidor de Freud, incentivou Melanie Klein a estudar o comportamento de crianças
Contribuição à psicanálise: Atuação do terapeuta deve ser mais ativa e menos distante do paciente para permiti-lo trazer à tona suas emoções

KARL ABRAHAM
(1877-1925)
Psicanalista alemão, foi discípulo de Freud e analista de Melanie Klein
Contribuição à psicanálise: O desenvolvimento de doenças como a esquizofrenia e a psicose maníaco-depressiva tem origem na fixação em alguma das fases do desenvolvimento psicossexual da criança

A PARTIR DOS ANOS 20

MELANIE KLEIN
(1882-1960)
Quem foi: Nascida na Áustria, influenciou a linhagem inglesa da psicanálise e foi uma das pioneiras em estudar crianças, que até então não eram analisadas. Suas teorias se chocaram com as de Anna, filha de Freud, para quem a abordagem de crianças só tinha um viés pedagógico
Teoria: Crianças manifestam desde cedo fantasias e emoções como a destrutividade, voltada, por exemplo, ao seio materno. O complexo de Édipo aparece nos primeiros meses de vida, sugerindo que os conflitos e desejos começam muito antes do imaginado por Freud
Técnica: O analista deve interpretar brincadeiras e desenhos feitos por crianças como manifestações precoces de expressão de emoções

A PARTIR DOS ANOS 50

WILFRED BION
(1897-1979)
Desenvolveu as ideias de Klein e formulou uma teoria sobre o comportamento de grupos em situações de crise
Teoria: A agressividade dirigida ao mundo externo não é mera patologia, como crê Klein, mas uma forma de comunicação do paciente que deve ser levada em conta pelo analista
Técnica: O terapeuta avalia a si mesmo na relação com o paciente e atribui a não evolução do quadro também à sua postura na análise

A PARTIR DOS ANOS 40

DONALD WINNICOTT
(1896-1971)
Pediatra britânico, seguiu uma terceira linha na tradição inglesa quando surgiu a cisão entre Melanie Klein e Anna Freud
Teoria: O ser humano está destinado a amadurecer psicologicamente, mas precisa de um ambiente confiável para isso. A análise não deve ficar restrita ao universo das fantasias infantis, mas incluir a relação da criança com os pais e com o mundo
Técnica: O analista recria o ambiente de segurança para possibilitar o amadurecimento do paciente

OS DISSIDENTES

PRIMEIRA METADE DO SÉCULO 20

WILHELM REICH
(1897-1957)
Psiquiatra nascido na atual Ucrânia, teve contato com as ideias de Freud, mas rompeu com a psicanálise tradicional por defender um engajamento político com o marxismo
Teoria: As neuroses se originam a partir de uma falha em dissipar a energia do corpo através do orgasmo
Técnica: Valoriza psicoterapias corporais para romper com a 'couraça' física e liberar a carga de energia. Inspirou técnicas como a bioenergética, a biodinâmica e a somaterapia

PRIMEIRA METADE DO SÉCULO 20

CARL JUNG
(1875-1961)
Discípulo favorito de Freud, rompeu com o mestre e fundou a psicologia analítica
Teoria: Nem todas as neuroses têm base sexual. Além de um inconsciente individual há também um inconsciente coletivo, compartilhado por todas as pessoas e de onde decorrem sonhos e fantasias
Técnica: O analista leva em conta o aspecto simbólico dos relatos do paciente e a sua relação com os arquétipos -padrões psíquicos universais, expressados pelo inconsciente

Fontes: Daniel Delouya, Adriana Nagalli, Nina Saroldi, Elizabeth Antonelli, Fani Hisgail, José Outeiral, psicanalistas 





BEABÁ DA PSICANÁLISE 

Palavras cruzadas

A invenção de Freud está entranhada na cultura, mas nem por isso sabemos o básico sobre ela 

GUILHERME GENESTRETI
DE SÃO PAULO

As palavras são associadas, interpretadas, esmiuçadas. Na psicanálise, a cura se dá por meio delas. Atenção às palavras: tudo bem usar "recalque", "projeção" e outros termos saídos desse campo e já incorporados. Mas confundir os "psis", o que é comum, não.
Psicanalista é uma coisa, psiquiatra, outra. Psiquiatra é médico: estuda transtornos mentais e os trata prescrevendo remédios. O psicólogo também estuda saúde mental, mas não receita. Ele estuda o "software que roda no cérebro", como diz Francisco Daudt, colunista da Folha. Há muitas linhas de psicologia, muitos jeitos de estudar comportamento. Terapeuta é quem cuida. Psicoterapeuta, então, é quem cuida do funcionamento mental das pessoas usando alguma técnica como psicodrama ou as das terapias cognitivo-comportamentais.
Já o psicanalista estuda o tal 'software' segundo o modelo de Freud, isto é, partindo da premissa que o inconsciente governa muitas das ações humanas.
O psicanalista pode ser um teórico ou um psicoterapeuta que cuida de pessoas usando a ferramenta psicanálise. Parte fundamental dessa ferramenta é o método da associação livre, criado por Freud para sondar o inconsciente. Nele, o paciente é levado a falar sobre seus pensamentos de forma a revelar a origem de seus conflitos.
No centro dos conflitos estaria o complexo de Édipo, conjunto de impulsos amorosos e hostis dirigidos pela criança aos pais. O conceito fazia mais sentido quando a única forma de família tinha figuras de pai e mãe bem definidas. E hoje? Édipo não precisa ser entendido como antes, ao pé da letra, diz Isabel Gomes, professora de psicologia da USP. "Se duas mães fazem as funções materna e paterna, a triangulação se mantém."

NINGUÉM É PURO
Psicanalistas freudianos puros são raros, diz o psicanalista Luiz Tenório Oliveira Lima. "Analistas experientes transitam com a tradição de Freud e a dos sucessores." A primeira grande mudança na psicanálise veio com a austríaca Melanie Klein (1882-1960). Ela mostrou que crianças já podem ser analisadas desde cedo.
"Alguém que atende crianças não pode ignorar as contribuições de Klein", diz Luís Claudio Figueiredo, que estuda a autora. Klein substituiu a associação livre pela interpretação de desenhos, brincadeiras e jogos, nos quais a criança já expressa suas fantasias.
Segundo o psicanalista Daniel Delouya, é uma linha eficaz para tratar psicoses infantis. Nessa terapia, a criança cria uma realidade própria com suas fantasias. "Klein trabalha bem esse mundo interno da criança." Nem tudo é mundo interno para os seguidores de Donald Winnicott (1896-1971). O pediatra inglês pôs o ambiente na equação psicanalítica, defendendo que o desenvolvimento da criança depende de segurança, dada principalmente pela mãe.
Essa linha "acolhe mais" o paciente, diz Elsa Dias, da Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana. Segundo ela, essa corrente serve sobretudo para transtornos alimentares e síndrome do pânico, que teriam raiz em um encontro não muito acolhedor da criança com o mundo.
Nessa visão, a anorexia se relaciona a problemas no aleitamento; o pânico, a um bebê interrompido a toda hora pela mãe intrusiva. Sucessor de Klein, Wilfred Bion (1897-1979) contribuiu para a análise repensando a relação analista-paciente. "O analista não é só a figura sobre a qual o paciente projeta ou transfere: ele se observa nessa relação", diz Adriana Nagalli, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Além de se observar, ele devolve ao paciente as próprias experiências.
Segundo Nagalli, esse vínculo ajuda o paciente a tolerar frustrações. "Ao compreender que seu analista também falha, você suporta melhor suas limitações."
O francês Jacques Lacan (1901-1981) temperou a psicanálise com a linguística. O inconsciente, para ele, só é acessível pelo verbo, já que é a linguagem que organiza e traduz as experiências.

TEMPO TERAPÊUTICO
Lacan reformulou a duração da sessão, propondo o "tempo lógico". Em vez dos clássicos 50 minutos, o analista define o término conforme a situação.
"Na linha freudiana, o analista é uma folha em branco sobre a qual o paciente projeta sua vivência. Quando Lacan introduz o tempo lógico, o analista passa a existir", diz Anna Veronica Mautner.
Segundo Jorge Forbes, do Instituto de Psicanálise Lacaniana, o tempo é fator terapêutico. "Prefiro a arbitrariedade de quem dirige a terapia do que a do relógio", diz.
Lacan mostrou que Édipo não dava conta de explicar novos sintomas do mundo moderno, com menos regras definidas e mais necessidade de tomar decisões, explica Forbes. "O analista põe as cartas na mesa e faz o paciente a se responsabilizar pelas suas decisões."

Veja galeria de imagens e mais conteúdo sobre psicanálise
folha.com/112651




MAIORES INIMIGOS

Nem tudo é Édipo

Para críticos, teoria freudiana é limitada ao mundo familiar 

DARIO DE NEGREIROS
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

A psicanálise é como a Revolução Russa, diziam os pensadores franceses Gilles Deleuze (1925-1995) e Félix Guattari (1930-1992). Começou bem, acabou mal e ninguém sabe explicar por quê.
Juntos, eles escreveram "O Anti-Édipo" (Editora 34, 560 págs., R$59), uma das mais célebres críticas da teoria freudiana. No entanto, quando se encontraram pela primeira vez, Deleuze era um estudioso da psicanálise e Guattari era, ele próprio, um psicanalista.
"Jamais o encontro com Guattari teria sido fecundo se Deleuze não tivesse se sentido encurralado em relação à utilização da psicanálise", conta David Lapoujade, professor da Sorbonne, ex-aluno de Deleuze e ele próprio um crítico da teoria freudiana. Segundo essa visão, a psicanálise não seria capaz de perceber as influências sociais e políticas no comportamento das pessoas, interpretando tudo a partir do velho e limitado esquema triangular do Édipo: as relações entre o filho, o pai e a mãe.
"Por que os psicanalistas querem que o inconsciente signifique toda vez a mesma coisa: Édipo?", questiona Lapoujade. A crítica de Deleuze e Guattari vai além. Eles chegam a caracterizar os psicanalistas como "os novos padres". Enquanto para o cristianismo nasceríamos todos culpados pelo pecado original, para a psicanálise, o complexo de Édipo faria com que fôssemos culpados por desejar o que não podemos ter: o incesto.
"Eles querem impor uma concepção moral do desejo." Para o filósofo e professor da USP Vladimir Safatle, a mensagem da psicanálise é outra: nós não podemos ter tudo o que desejamos. E conhecer os limites do próprio desejo seria mais sabedoria do que moralismo.
"Qualquer pessoa pode encontrar isso em sua vida: há situações em que há várias coisas que você quer muito. E você só sabe que vai ter que perder alguma", diz Safatle. "É mais sábio saber lidar com isso do que criar a fantasia de que o desejo pode tudo." O filósofo discorda, ainda, de que a psicanálise isolaria a pessoa das questões sociais e políticas ao privilegiar suas relações familiares.

PORTA DE ENTRADA
Para ele, é o contrário: Freud vê a família como a porta de entrada na sociedade. Por ser nosso primeiro núcleo de socialização, ela se torna uma referência para relações sociais posteriores.
"A maneira como eu descubro o que é autoridade dentro do núcleo familiar, com a autoridade paterna, por exemplo, vai servir de referência para os meus comportamentos futuros."
Mas Safatle admite que alguns psicanalistas podem errar a mão ao tentar interpretar todos os fenômenos sociais a partir do esquema familiar e do Édipo. Ainda assim, a crítica deleuzeana seria muito radical. "Não é possível reduzir tudo à família, mas também não é possível ignorá-la."


OPINIÃO

"A psicanálise tem a falha de ser imune ao presente"


ESSA TEORIA NÃO É CIÊNCIA: FALTAM METODOLOGIA E RESULTADOS


HÉLIO SCHWARTSMAN
ARTICULISTA DA FOLHA

A psicanálise sobrevive com vigor na Argentina, no Brasil e na França. No resto do mundo, seu estado varia de decadente a agonizante. E, mesmo no primeiro grupo, ela vem sofrendo ataques, como atesta a publicação, em 2005, na França, de "O Livro Negro da Psicanálise", obra coletiva que reúne 40 artigos contra Freud, alguns deles bastante virulentos.
Em 2010, foi a vez do polêmico filósofo Michel Onfray desancar Freud, em 624 páginas do seu livro "O Crepúsculo de um Ídolo". Onfray diz que psicanálise não passa de religião, não tem mais efeito do que placebos e acusa Freud de não medir esforços para obter dinheiro e glória.
"O Livro Negro" e "Crepúsculo" traduzem para o francês humores antipsicanalíticos que emanam do mundo acadêmico americano, onde a visão preponderante é a de que Freud foi um charlatão. De minha parte, acho difícil sustentar que a psicanálise seja uma ciência. Parece-me, entretanto, historicamente falso, além de injusto, negar a Freud um lugar no panteão dos pioneiros.
Afinal, ele popularizou a noção de inconsciente e ressaltou sua importância nos processos mentais humanos. O ocaso de Freud nos EUA teve início nos anos 50, com os primeiros fármacos psicoativos. A constatação de que drogas provocavam alterações no psiquismo abriu uma nova avenida para pesquisas.
Ressonâncias magnéticas funcionais e tomografias por PET completaram o arsenal da neurociência para esquadrinhar o cérebro. Paixões e pensamentos deixam de ser abstrações para se tornar manifestações físicas nos neurônios. Paradoxalmente, o próprio Freud, que jamais renunciou à pretensão de fazer ciência, teria aplaudido o avanço da psicofarmacologia.
No inacabado "Esboço de Psicanálise", de 1938, escreveu: "O futuro provavelmente vai nos ensinar a influenciar diretamente as quantidades (psíquicas) de energia e sua distribuição no aparelho psíquico por meio de matérias químicas especiais. Talvez surjam ainda outras possibilidades ainda desconhecidas de terapia; por enquanto nós ainda não temos nada melhor que a técnica psicanalítica à nossa disposição".
Aparentemente, esse futuro chegou -em que pese a forma ainda grosseira com que atuam os psicofármacos. Como foi formulada, a psicanálise não é ciência. Faltam-lhe metodologia, resultados mensuráveis e conteúdo empírico para reclamar estatuto epistemológico.
Pelo menos para mim é especialmente chocante a ideia de que o principal que havia a ser dito sobre psiquismo humano foi dito por Freud há mais de 70 anos e, de lá para cá, nada de muito relevante surgiu.
Se é verdade que as ciências padecem do defeito de olhar pouco para seu passado, a psicanálise tem a falha de ser imune ao presente. A verdade já foi revelada pelo profeta vienense, não havendo mais nada (ou quase nada) a acrescentar. E essa é uma característica que, creio, dá razão a Onfray quando afirma que a psicanálise se estruturou de forma semelhante às religiões.
Para prová-lo, basta conferir o alto número de defecções, rompimentos e excomunhões entre seus membros. Só que nem a precariedade epistemológica da psicanálise nem as picuinhas levantadas por Onfray, como as supostas infidelidades conjugais de Freud ou suas simpatias pelo fascismo, são suficientes para tirar do vienense o mérito de ter posto o inconsciente na ordem do dia.
Avanços da neurociência mostram que esse conceito é mais importante do que suspeitava o pai da psicanálise. Experimentos nesse campo já colocam em dúvida até a existência do livre-arbítrio. Ter percebido isso num mundo vitoriano é uma façanha.
Só isso basta para colocar Freud no mesmo patamar de outros grandes pensadores que, munidos só da especulação, contribuíram para que a humanidade lançasse um novo olhar sobre si mesma.





LINGUAGEM

NARCISISMO
Este conceito é trabalhado em diferentes contextos dentro da pscicanálise, mas significa, basicamente, amar a si mesmo. O termo narcisismo denomina uma fase da infância em que as crianças buscam o próprio corpo como fonte de prazer, mas também pode identificar o distúrbio que faz a pessoa egoísta se interessar apenas por ela mesma. A expressão foi usada por Freud pela primeira vez para explicar o homossexualismo, isto é, quando um indivíduo busca um parceiro sexual parecido com ele.

INCONSCIENTE
Estrutura psíquica constituída por conteúdos recalcados que não chegam à consciência. Conceito mais fundamental da teoria freudiana, pressupõe que a maior parte da vida psíquica de uma pessoa permaneça em um nível que não obedece à racionalidade. Segundo Freud, é no inconsciente que ficam guardados os desejos reprimidos. Grande parte do comportamento e das decisões de uma pessoa seriam fruto do trabalho do inconsciente.

ASSOCIAÇÃO LIVRE
Método de investigação do inconsciente em que o paciente é estimulado a falar tudo que lhe vier à cabeça, sem se preocupar se faz ou não sentido. O objetivo da técnica é descobrir as cadeias associativas que formam o pensamento mais primitivo de cada pessoa, para entender como ela raciocina antes que as ideias passem pelo filtro da autocensura.

COMPLEXO DE ÉDIPO 
Ponto central da teoria freudiana. É o conjunto de sentimentos afetivos e hostis que a criança tem em relação aos pais. O caso clássico é o do menino que sente atração pela mãe e ódio pelo pai, visto como rival. Esse complexo seria universal e atingiria meninas (para isso, Jung criou o termo "complexo de Electra") e crianças vindas de organizações familiares diferentes.

INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS
Para Freud, os sonhos são projeções do inconsciente. No sono, haveria uma indulgência da censura que permitiria o acesso a desejos recalcados na vigília. Ao ouvir o relato de um sonho, o analista poderia interpretá-lo de maneira semelhante à interpretação de uma associação livre. Por isso a psicanálise clássica dá tanta importância aos sonhos: eles seriam a associação livre praticada todos os dias, por todo mundo.

INVEJA DO PÊNIS
A fase da infância em que a menina percebe que os meninos têm pênis e ela, não, é o elemento essencial da sexualidade feminina, para Freud. A partir desse momento, as mulheres experimentariam um complexo de castração e um sentimento de inveja e desejo em torno do pênis. Na idade adulta, essa inveja evoluiria para uma vontade de possuir um pênis dentro de si por meio do sexo ou da gestação de um filho. Quando mal resolvida, a inveja poderia gerar sintomas neuróticos ou complexo de masculinidade.

EGO, ID E SUPEREGO
Para explicar o funcionamento da mente, Freud concebeu uma estrutura com três níveis interligados. O ego é o primeiro andar dessa estrutura e simboliza a parte organizada do sistema, aquela que atua na realidade externa e tenta se adaptar a ela. O id é a fonte das memória reprimidas e dos impulsos instintivos, dominados pelo princípio do prazer e do desejo imediato e inconsequente. O superego, por fim, é uma espécie de juiz e vigilante do comportamento. Funciona como a autoconsciência moral da personalidade.

BISSEXUALISMO 
Na psicanálise, o termo bissexualidade nem sempre se refere a uma pessoa que tem interesse sexual pelos dois gêneros. Para Freud, todo ser humano traz dentro de si características femininas e masculinas, assim como desejo pelos dois sexos. Ao longo da formação, o mais comum é que uma dessas características se sobressaia, enquanto a outra é dominada, gerando um recalque no inconsciente com o qual é preciso lidar.

PULSÕES
É um estado de tensão ou de excitação análogo aos impulsos instintivos que orienta o comportamento em direção à satisfação de um desejo primário que a pessoa nem sempre consegue identificar. Inicialmente, Freud postulou duas pulsões: a sexual e a de autoconservação. Depois, agrupou essas duas na categoria de pulsões sexuais, contrapondo-as à pulsão de morte.


NEURO

SUZANA HERCULANO-HOUZEL suzanahh@gmail.com

Neuropsicanálise existe?


Neuroses não são distúrbios de função sexual: o que Freud pensava não importa para a neurociência


Mark Solms bem que tentou, ao fundar, em 2000, a Sociedade Internacional de Neuropsicanálise, promover um trabalho interdisciplinar entre a psicanálise e a neurociência: ele gostaria de usar a neurociência para "comprovar" as teorias de Freud e usá-las como arcabouço intelectual para a neurociência.
Na prática, a fusão não funciona, e eu diria que por uma razão bem simples: uma nunca precisou da outra. Freud propôs o que era cabível à sua experiência profissional, aos seus valores e aos seus conhecimentos limitados à neurologia da época, no contexto de uma Europa vitoriana pós-Darwin onde era tão problemático quanto importante lembrar que o ser humano tem impulsos como os outros animais.
Então, como hoje, a psicanálise não dependia de respaldo neurocientífico: ela é um sistema fechado de crenças sobre o comportamento humano, de grande utilidade em casos de necessidade de insight e autoconhecimento -e zero utilidade em distúrbios como dependência química, transtornos obsessivos-compulsivos e esquizofrenia.
Sim, há um enorme interesse em comum: compreender a mente humana. Mas foi justamente livre da psicanálise que a neurociência andou tanto. Hoje reconhecemos que o carinho materno na infância é fundamental ao desenvolvimento emocional; que os impulsos, sexuais e outros, são tão importantes para o comportamento que são orquestrados por um sistema dedicado (o de recompensa); e que tudo opera sob o controle de um sistema executivo que autoriza e torna conscientes só alguns dos processos.
Mas doenças mentais não resultam de repressão falha, neuroses não são distúrbios de função sexual originados na infância e sonhos são só acontecimentos recentes ou passados revisitados pelo cérebro. Se Freud pensava assim ou não, pouco importa para a neurociência. E, para os psicanalistas, pouco importa onde ficam o id ou o ego, se é que ficam em algum lugar. Ainda que alguns, mais chegados à neurociência, tenham apreço pela liberdade de pensar para além dos ditames de Freud e gostem de saber no que a sua teoria erra ou acerta.
Mas se não há "psicanálise" se a teoria psicanalítica não for seguida à risca, só o próprio Freud poderia rever seus conceitos à luz da neurociência e, então, propor uma neuropsicanálise. Enquanto isso não acontecer, a tal da "neuropsicanálise" continua não existindo...

SUZANA HERCULANO-HOUZEL é neurocientista, professora da UFRJ, autora do livro "Pílulas de Neurociência para Uma Vida Melhor" (Sextante) e do blog www.suzanaherculanohouzel.com





BEABÁ DA PSICANÁLISE 

Palavras cruzadas

A invenção de Freud está entranhada na cultura, mas nem por isso sabemos o básico sobre ela 

GUILHERME GENESTRETI
DE SÃO PAULO

As palavras são associadas, interpretadas, esmiuçadas. Na psicanálise, a cura se dá por meio delas. Atenção às palavras: tudo bem usar "recalque", "projeção" e outros termos saídos desse campo e já incorporados. Mas confundir os "psis", o que é comum, não.
Psicanalista é uma coisa, psiquiatra, outra. Psiquiatra é médico: estuda transtornos mentais e os trata prescrevendo remédios. O psicólogo também estuda saúde mental, mas não receita. Ele estuda o "software que roda no cérebro", como diz Francisco Daudt, colunista da Folha. Há muitas linhas de psicologia, muitos jeitos de estudar comportamento. Terapeuta é quem cuida. Psicoterapeuta, então, é quem cuida do funcionamento mental das pessoas usando alguma técnica como psicodrama ou as das terapias cognitivo-comportamentais.
Já o psicanalista estuda o tal 'software' segundo o modelo de Freud, isto é, partindo da premissa que o inconsciente governa muitas das ações humanas.
O psicanalista pode ser um teórico ou um psicoterapeuta que cuida de pessoas usando a ferramenta psicanálise. Parte fundamental dessa ferramenta é o método da associação livre, criado por Freud para sondar o inconsciente. Nele, o paciente é levado a falar sobre seus pensamentos de forma a revelar a origem de seus conflitos.
No centro dos conflitos estaria o complexo de Édipo, conjunto de impulsos amorosos e hostis dirigidos pela criança aos pais. O conceito fazia mais sentido quando a única forma de família tinha figuras de pai e mãe bem definidas. E hoje? Édipo não precisa ser entendido como antes, ao pé da letra, diz Isabel Gomes, professora de psicologia da USP. "Se duas mães fazem as funções materna e paterna, a triangulação se mantém."

NINGUÉM É PURO
Psicanalistas freudianos puros são raros, diz o psicanalista Luiz Tenório Oliveira Lima. "Analistas experientes transitam com a tradição de Freud e a dos sucessores." A primeira grande mudança na psicanálise veio com a austríaca Melanie Klein (1882-1960). Ela mostrou que crianças já podem ser analisadas desde cedo.
"Alguém que atende crianças não pode ignorar as contribuições de Klein", diz Luís Claudio Figueiredo, que estuda a autora. Klein substituiu a associação livre pela interpretação de desenhos, brincadeiras e jogos, nos quais a criança já expressa suas fantasias.
Segundo o psicanalista Daniel Delouya, é uma linha eficaz para tratar psicoses infantis. Nessa terapia, a criança cria uma realidade própria com suas fantasias. "Klein trabalha bem esse mundo interno da criança." Nem tudo é mundo interno para os seguidores de Donald Winnicott (1896-1971). O pediatra inglês pôs o ambiente na equação psicanalítica, defendendo que o desenvolvimento da criança depende de segurança, dada principalmente pela mãe.
Essa linha "acolhe mais" o paciente, diz Elsa Dias, da Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana. Segundo ela, essa corrente serve sobretudo para transtornos alimentares e síndrome do pânico, que teriam raiz em um encontro não muito acolhedor da criança com o mundo.
Nessa visão, a anorexia se relaciona a problemas no aleitamento; o pânico, a um bebê interrompido a toda hora pela mãe intrusiva. Sucessor de Klein, Wilfred Bion (1897-1979) contribuiu para a análise repensando a relação analista-paciente. "O analista não é só a figura sobre a qual o paciente projeta ou transfere: ele se observa nessa relação", diz Adriana Nagalli, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Além de se observar, ele devolve ao paciente as próprias experiências.
Segundo Nagalli, esse vínculo ajuda o paciente a tolerar frustrações. "Ao compreender que seu analista também falha, você suporta melhor suas limitações."
O francês Jacques Lacan (1901-1981) temperou a psicanálise com a linguística. O inconsciente, para ele, só é acessível pelo verbo, já que é a linguagem que organiza e traduz as experiências.

TEMPO TERAPÊUTICO
Lacan reformulou a duração da sessão, propondo o "tempo lógico". Em vez dos clássicos 50 minutos, o analista define o término conforme a situação.
"Na linha freudiana, o analista é uma folha em branco sobre a qual o paciente projeta sua vivência. Quando Lacan introduz o tempo lógico, o analista passa a existir", diz Anna Veronica Mautner.
Segundo Jorge Forbes, do Instituto de Psicanálise Lacaniana, o tempo é fator terapêutico. "Prefiro a arbitrariedade de quem dirige a terapia do que a do relógio", diz.
Lacan mostrou que Édipo não dava conta de explicar novos sintomas do mundo moderno, com menos regras definidas e mais necessidade de tomar decisões, explica Forbes. "O analista põe as cartas na mesa e faz o paciente a se responsabilizar pelas suas decisões."

Veja galeria de imagens e mais conteúdo sobre psicanálise
folha.com/112651

Nenhum comentário:

Postar um comentário